Raiane nasceu há 35 anos, na cidade mineira de Arinos, no noroeste do estado. Sua mãe, Leninha, teve uma gravidez normal, sem nenhuma intercorrência. Raiane nasceu saudável e foi ficando cada vez mais esperta e inteligente. Apesar de já ter dois anos de idade, Raiane ainda não falava. Mas como muitas crianças apresentam alguma dificuldade de desenvolvimento em seus primeiros anos de vida, a família não se abalou. Mas ao completar 2 anos e meio, Leninha e seu marido, Milton, decidiram marcar uma consulta com um médico em Montes Claros. O especialista recomendou que esperassem Raiane completar três anos para, então, fazerem uma audiometria na menina.

Quando fez três anos, Raiane já tinha uma irmãzinha, a Rejane, e Maria Helenice, sua mãe (nossa querida Leninha), estava grávida de um terceiro bebê. Nessa ocasião, a família veio para Belo Horizonte, onde Raiane faria a audiometria recomendada pelo médico. Naquele dia, Leninha e Milton tiveram, enfim, a certeza daquilo que tanto temiam: Raiane tinha surdez profunda bilateral. “Descobri, de uma só vez, que minhas duas filhas eram surdas”, conta Leninha. “Como Raiane era a minha primeira filha, e como ela sempre foi muito astuta, eu não percebi o problema. Eu não percebi ou eu não queria ver”, desabafa.

Emocionada, Leninha conta que, naquele momento, ela ouviu o choro de sua alma. Além de duas filhas surdas, precisaria conviver por mais seis meses com o temor de que seu terceiro bebê também nascesse com problema de audição. No entanto, apesar da apreensão dos pais, Milton Júnior nasceu ouvinte dos dois ouvidos.

Peregrinação

O casal começou uma verdadeira peregrinação por consultórios de médicos renomados em diversas cidades do País. “Eu queria achar um especialista que me dissesse que o que elas tinham não era surdez”, relembra a mãe. “Eu estava tentando negar a realidade”.

Confirmado o diagnóstico por todos os médicos consultados, Leninha e Milton foram encaminhados para a equipe de psicólogos de um renomado médico de Bauru, em São Paulo. Elas disseram que as meninas teriam que se comunicar por meio de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, especialmente a Rejane, pois diferentemente de Raiane, ela não tinha facilidade para a leitura labial.

“A única coisa que eu falei na hora foi: ‘Elas vão se comunicar em Libras com quem?’”, conta Leninha. Para desespero dela, nem ela, nem Milton, nem ninguém que eles conheciam em Arinos sabia Libras. “Chorei desesperadamente tamanha era a dor”, diz.

Ela conta que, certa vez, ela e o marido foram visitar uma escola para surdos em Brasília. Quando viram no pátio do recreio todas aquelas crianças se comunicando por sinais, Leninha e Milton entraram no carro e foram embora. “No fundo, eu tinha preconceito com Libras”, confessa.

“Aí comecei a me punir. Se minhas filhas não podiam ouvir música, eu me privava de ouvir música também”, relata. “Até que um dia, uma fonoaudióloga me disse ‘Mãe, em Libras também é possível declamar poesia, cantar, fazer qualquer coisa…”

Leninha chegou a se mudar com os três filhos para Belo Horizonte, depois para Unaí, enquanto Milton permaneceu trabalhando em Arinos. Mas a distância entre pai e filhos acabou fazendo com que a família decidisse voltar a ficar unida em Arinos.

Nessa época, Leninha começou a ter contato com a APAE de Unaí até que, certo dia, durante um evento, caiu em prantos ao ver uma criança com deficiência. Testemunha da dor daquela mãe, o médico pediatra Eduardo Barbosa, então presidente da Federação das APAEs de Minas Gerais, decidiu conversar com ela e saber o que tanto lhe afligia.

Após contar toda a sua história, Leninha conta que o doutor Eduardo lhe disse: “Não pergunte por que Deus te deu duas filhas surdas. Pergunte o que Deus quer de você. E Deus quer que você vá para a sua cidade e veja quantas pessoas com deficiência precisam de apoio”, relembra.

Determinado, Milton, com o apoio de pessoas da comunidade, fez um censo e, juntos, descobriram quantas pessoas com deficiência havia em Arinos. Com o resultado em mãos, receberam do Rotary a doação de um imóvel e a Associação de Senhoras de Rotaryanos promoveu um baile, cuja renda foi totalmente revertida para que lá fosse fundada a APAE de Arinos. O então prefeito da cidade, Dr. Antônio, foi fundamental para que a APAE pudesse entrar em atividade: ofereceu uma subvenção e custeou os salários de todos os profissionais que lá passaram a atuar. A Escola da APAE de Arinos recebeu o nome “Raio de Luz”, em homenagem a Raiane e Rejane. “Eu e Milton fundamos a APAE não para as nossas filhas, mas por nossas filhas”, ressalta.

Libras

A Libras surgiu na vida de Raiane e Rejane enquanto a tia Lindaura amamentava seu bebê. Disposta a ajudar as sobrinhas, passou a ir uma vez por semana a Brasília para fazer o curso da Língua. Assim, Lindaura ensinou Libras não só para Raiane e Rejane, como também para Leninha, Milton, para diversos outros surdos e comunidade interessada de Arinos.

As meninas prosseguiram os estudos em Arinos, até que chegou o momento de Raiane fazer o vestibular. Decidida a fazer fisioterapia, Raiane não titubeou: fez as provas e foi aprovada em três faculdades: em Montes Claros, em Brasília e em Patrocínio. Acabou optando por Patrocínio e para lá se mudou. Com muitas dificuldades de acompanhar as aulas, uma vez que a faculdade não oferecia intérpretes, Raiane decidiu fazer prova de transferência e foi aprovada pela PUC Minas, que oferecia, segundo Leninha, uma estrutura fantástica para que a filha se formasse e apreendesse tudo o que o curso poderia lhe proporcionar.

Em 2010, Raiane se formou em Fisioterapia pela PUC e, em seguida, fez uma pós-graduação em fisioterapia geriátrica. Em 2016, ela se casou em uma linda cerimônia celebrada em Libras por um pastor também surdo.

Naquele momento, Raiane estava preparadíssima para o mercado de trabalho, mas, pelo que pôde perceber, o mercado não estava preparado para ela. “A maioria das pessoas ouvintes, a grande parte das empresas não acreditam na capacidade do surdo, principalmente aqueles que estão na área da saúde”, conta Raiane. “Falta aos ouvintes esse olhar de que o surdo é, sim, capaz de trabalhar naquilo que ele quiser, em qualquer área. É preciso o quanto antes fazermos uma reflexão: os ouvintes precisam reconhecer que o surdo é capaz e dar esse acesso para o trabalho”, reflete.

Apesar de todas as dificuldades, Raiane chegou a trabalhar em algumas empresas. Mas seu primeiro grande desafio como profissional foi cuidar do próprio pai, que sofreu um gravíssimo acidente em 2017. Após voltar para casa, depois de ficar mais de dois meses internado em uma UTI, Raiane ia todos os dias à casa dos pais, de segunda a segunda, trabalhar na recuperação de Milton. E foi ela a conseguir a completa recuperação daquele pai que sempre a incentivou tanto.

CER IV Contagem

Em 2019, Raiane começou a trabalhar como fisioterapeuta no CER IV Contagem/APAE BH. No Centro de Reabilitação, o dia a dia é desafiador, mas, com a determinação e a disciplina que lhes são peculiares, Raiane vem conseguindo vencer uma a uma as barreiras que aparecem. Especializada em idosos, um dos grandes desafios de Raiane é atender todos os tipos de pacientes e, para isso, ela vem estudando muito e contanto com o apoio de toda a equipe multidisciplinar de profissionais do CER IV.

Com seus pacientes, ela faz leitura labial. Caso apareça alguma dificuldade, ela se comunica por escrito, pede a ajuda de colegas e, por meio de um tablet, também conta com o apoio da plataforma Signumweb, uma start-up que faz a comunicação entre surdos e ouvintes em tempo real, via internet.

Durante a pandemia, Raiane rompeu ainda mais barreiras: atendia seus pacientes diariamente por meio de vídeos criativos e instigantes e os resultados foram surpreendentes.

“Estou me aprimorando, vivenciando muitos casos, nos mais diferentes tipos de pacientes. Estou também tendo contato com profissionais de diversas áreas. Toda a minha experiência no CER IV tem sido muito importante, mas o melhor de tudo tem sido justamente essa troca, esse compartilhamento”, ressalta.

Ao longo de sua vida, Raiane nunca teve dúvidas de que seria capaz de conquistar tudo aquilo que se propusesse a alcançar.  “Se os ouvintes conseguem, eu também vou conseguir”, pensava ela. E, assim, com tanta assertividade, hoje ela nos prova que estava – está – de fato certa.

Raiane conta que, agora, sua próxima meta é ter seu próprio consultório. Com tanta obstinação, foco e método, quem duvida que, em breve, Raiane estará inaugurando seu consultório fisioterápico para pacientes idosos como tanto sonha?